Em 2016, foi lançada no Brasil a Nova Versão Transformadora (NVT), versão bíblica publicada pela Mundo Cristão e que contou com uma extensiva campanha de marketing (algo comum em lançamentos de novas versões bíblicas), foi recebida com vários elogios, em especial pela facilidade na leitura e o aparato técnico de sua produção, que contou com a participação do já falecido irmão Carlos Osvaldo Pinto, Mauricio Zágari, Estevan F. Kirschner, entre outros.
A NVT contou com a forte “concorrência” (um termo infeliz quando para expressa a legítima venda de bíblias) da Nova Almeida Atualizada (NAA), que aparentemente vem ganhando mais circulação entre os leitores da Bíblia. Todavia, a NVT continua a ser publicada pela Mundo Cristão e vem ganhando um espaço com determinado número de leitores.
Neste artigo, buscarei fazer uma breve análise desta versão, verificando suas principais características que a distinguem como tradução/versão bíblica.
a) O Texto Grego da NVT.
A NVT na verdade é uma contraparte brasileira da New Living Translation (NLT), publicação de certo sucesso nos Estados Unidos e que, assim como sua contraparte americana, é baseada no Texto Crítico do Novo Testamento, a partir das edições do Greek New Testament, da United Bible Societies (UBS) (4° edição) e o Novum Testamentum Graece, editado por Nestle & Aland (NA -27° edição) ainda que no prefácio da edição, os editores afirmem que os tradutores escolheram “diferir dos textos gregos da UBS e da NA nos casos em que fortes evidências textuais ou outras evidências acadêmicas corroboravam sua decisão, seguindo variações que se encontravam em outras testemunhas antigas” (Introdução à Nova Versão Transformadora). Essencialmente a NVT é uma tradução baseada no Texto Crítico do Novo Testamento.
b) O Método de Tradução Empregado.
Segundo a Introdução à NVT, os tradutores afirmam que “no trabalho de tradução buscou-se deliberadamente oferecer um texto que pudesse ser entendido por um leitor típico da língua portuguesa contemporânea” e também “respeitando a natureza do contexto antigo e, ao mesmo tempo, procurando tornar a tradução mais clara para o público atual, muitas vezes onde a tradução tradicional traz “homem” como sinônimo de espécie humana, optamos por “seres humanos” ou “humanidade”, dentre outras escolhas”. É informado na introdução que termos teológicos já consagrados como “justificação” e “santificação” serem substituídos por “declarar justo” e “tornar santos” alegando que muitos leitores teriam “dificuldade de compreender”.
Tendo exposto as duas características principais da NVT, cabe agora ressaltar qualidades e problemas encontrados.
Pontos positivos.
A NVT possui como característica fundamental ser uma tradução que prima por uma linguagem simplificada e de fácil leitura, permitindo a fluência do texto bíblico de forma mais natural. Nesse quesito a NVT acerta em diversos momentos e, ainda que adote basicamente o princípio da Equivalência Dinâmica, consegue ser mais idiomaticamente fiel que traduções de viés semelhante como a Nova Tradução na Linguagem de Hoje, A Bíblia Viva ou A Mensagem, bem como mais literal em vários momentos.
Problemas com a NVT.
A despeito das qualidades encontradas, a NVT possui alguns problemas que precisam ser levados em consideração antes de se adquirir uma NVT como tradução padrão para estudos, pregação ou mesmo leitura devocional.
a). Problemas de Tradução.
Aquilo que é um de seus maiores triunfos constitui também o calcanhar de Aquiles de NVT. Na ênfase de facilitar a leitura bíblica, a NVT acaba sacrificando a precisão e alguns momentos a própria teologia e doutrina bíblica. Um dos grandes problemas na NVT, herdada da NLT se dá na questão do uso dos substantivos masculino e feminino. Nos Estados Unidos, a polêmica com traduções chamadas de gender neutral translations (traduções com neutralidade de gênero) é ainda maior, sendo que vários teólogos e pastores conservadores são contra a adoção deste tipo de tradução para uso na igreja[1]. Casos como esse são repetidos na NVT nas ocasiões onde a palavra “homem” é comumente traduzida como “humanidade”. Ainda que a Palavra “homem” (Hb. adam; gr. anthropos) tenha por vezes o sentido de “humanidade” e englobe ambos os sexos, tanto o “homem/macho” (Hb. ish, gr. andros) quanto a “mulher/fêmea” (Hb. ishah, gr. guine), traduzir “homem” por “pessoas” ou “seres humanos” em todos os casos acaba por omitir um significado teológico importante. Vejamos, por exemplo, alguns trechos do livro de Gênesis na NVT, comparando-as com o texto hebraico e uma tradução literal tradicional (Almeida Revista e Corrigida – ARC).
Gn 1.26:
-
אמר אלהים נעשׂה אדם בצלמ
- E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem. (ARC)
- Então disse Deus: “façamos o ser humano à nossa imagem…”(NVT)
Em 1 Timóteo 1:12 o apóstolo Paulo fala que Adão(אדם/αδαμ i.e.”homem”) foi criado, para depois Eva. Em Gênesis 1.26 temos o relato a criação do primeiro homem (hb. ish, macho) e da mulher (hb. ishah, mulher) escrito de forma resumida, algo comprovado pelo versículo subsequente (vers. 27). Todavia, a palavra adam pode ser utilizada exclusivamente para “homem” como indivíduo distinto da mulher (Gn 2.25), portanto Adão não expressa somente um conceito de “raça humana”, mas o primeiro homem recebe este nome como nome próprio, algo obliterado na NVT. Ainda mais surpreendente é a tradução da NVT em Gênesis 5:2, quando fazemos a comparação com o texto hebraico e a ARC como tradução de equivalência literal:
-
זכר ונקבה בראם ויברך אתם ויקרא את־שׁמם אדם ביום הבראם׃
- Homem e mulher os criou; e os abençoou e chamou o seu nome Adão, no dia em que foram criados. (ARC)
- Criou-os homem e mulher; quando foram criados, Deus os abençoou e os chamou de “humanidade”. (NVT).
O verso acima é de rica doutrina e e informação para uma antropologia teológica: Ainda que o homem e a mulher são essencialmente iguais e criados à imagem e semelhança de Deus, o fato de Deus dar o nome de adam para Adão e Eva evidencia as diferenças de papéis que ambos exercem na criação, apontando Adão como o “cabeça” que representa a raça humana. Acerca disso, o teólogo Wayne Grudem afirma: “o fato de Deus não ter decidido chamar a raça humana de ‘mulher’, mas de ‘homem’, provavelmente traz alguma relevância para a compreensão do plano original de Deus para homens e mulheres”[2]. Mais a frente, Grudem afirma que “a denominação de da raça humana com um termo que re referia a Adão em particular, ou ao homem em distinção da mulher, sugere o papel de liderança do homem”[3].
No Novo Testamento, tais ocorrências também estão presentes. Um caso interessante ocorre Em 1 Coríntios 16.13, onde Paulo encoraja a igreja em Corinto utilizando utilizando uma característica distintamente masculina, como o texto grego aponta claramente:
- γρηγορειτε στηκετε εν τη πιστει ανδριζεσθε κραταιουσθε .(TR)
Essa passagem costuma ser traduzida de maneira literal nas Bíblias que usam o método de tradução da equivalência formal, como mais comumente conhecida na versão de Almeida Corrigida:
- Vigiai, estai firmes na fé; portai-vos varonilmente, e fortalecei-vos. (ARC).
A King James Fiel traduz bem a passagem:
- “Vigiai, estai firmes na fé, portai-vos como homens,e sede fortes” (BKJ-Fiel)
A Tradução Ecumênica da Bíblia ainda é mais precisa:
- Vigiai! Sede firmes na fé! Sede homens! Sede fortes!” (TEB)
NVT, ao traduzir o verso, praticamente omite a característica em favor de uma expressão mais neutra:
- Estejam vigilantes. Permaneçam firmes na fé. Sejam corajosos. Sejam fortes (NVT)
Neste caso, bem Pode-se argumentar aqui substituição da palavra “homens”(Gr. andros) por “corajosos” seja justificada, pois Paulo aqui se dirige a toda a igreja em Corinto. De fato, essa tradução se ajusta muito bem com aquilo que Paulo está dizendo, todavia, Paulo estava se dirigindo igualmente aos representantes da igreja em Corinto e trata da questões dos auxiliares na obra (vrs 15-17), seu encorajamento, que tem certas características semíticas (Cf. 2 Sm 2.12) pode muito estar tendo os homens da igreja em mente.
Ao adotar a mesma posição de sua contraparte americana, a NVT acaba por estar sujeita as mesmas críticas que a NLT e outras versões receberam, por sacrificarem uma boa tradução em favor de expressões neutras que mais se alinham com ideologias feministas do que com a doutrina bíblica, algo que muito a prejudica como tradução digna de confiança.
Outro problema da NVT é a busca por querer clarificar demais expressões teológicas já consagradas no meio comum da igreja em favor de uma suposta “melhor compreensão” do leitor iniciante. Ao traduzir o termo “justificação” por “declarar justo”, a NVT acaba por dar explicar o significado ( de maneira correta, no meu entendimento) do texto ao invés de simplesmente traduzi-lo como se apresenta, algo apropriado mais a comentários exegéticos do que uma obra de tradução. Outros termos teológicos, como “santificação”, são termos tão conhecidos e de fácil entendimento para o leitor comum que tentar facilitá-los é uma atitude pueril.
b) O texto grego adotado.
Como falado anteriormente, a NVT adota como padrão as edições críticas do Texto Grego do Novo Testamento, raramente se desviando delas nas leituras variantes. Esse fato por si só já traz dificuldades para se adotar a NVT como versão padrão, haja vista os pressupostos naturalistas, os problemas manuscritológicos e os erros teológicos que estão presentes nos manuscritos que compõem as edições da UBS e NA e que já foram tratados em outros artigos disponíveis neste blog. Portanto, pode-se esperar omissões no texto bíblico e várias notas de rodapé.
Conclusão.
Diante do exposto, pode-se dizer que a NVT possui como qualidade a sua busca por um português fluente sem todavia ir em direção ao extremo do método de equivalência dinâmica, com isso, ela se afasta de versões como a Nova Tradução na Linguagem de Hoje e A Bíblia Viva, sendo uma boa substituta para estas por apresentar um texto mais próximo ao original, sendo indicada assim como leitura comparativa na preparação de sermões e de estudo Bíblico e em alguns momentos devocionais. Um dos grandes problemas, entretanto, é que traduções que seguem este tipo de metodologia e possuem copyright em voga, sempre correm o risco de sofrer futuras modificações, quer por pressão de estudiosos que apresentam supostas “novas descobertas” revolucionárias para o texto bíblico, que por motivo do português não ser mais “tão contemporâneo”, o que força uma descontinuidade entre gerações de crentes que usam por vezes a mesma versão com ano de publicação diferente![4]
O uso do gênero neutro em diversas instâncias e por vezes em textos cruciais, juntamente com um texto grego não confiável, fazem com que a NVT não deva ser adotada como versão padrão para uso na igreja, nem tampouco para pregação. Versões mais literais e tradicionais, como a Almeida Corrigida e Fiel, já apresentam um português atualizado e se baseiam em um bom texto grego, continuam a possuir mais apego junto a igreja em geral. Apego esse que, diante dos fatos expostos, torna-se plenamente justificável.
Soli Deo Gloria
Notas:
1. Dentre os teólogos conservadores da atualidade que combatem a neutralidade de gênero na tradução bíblica, um que merece destaque é Wayne Grudem. Seu livreto What’s wrong with Neuter-Gender Translaions? É uma crítica firme e biblicamente bem fundamentada acerca desta questão. Para ler o livreto de Grudem, clique aqui.
2. GRUDEM.Wayne: Teologia Sistemática. Tr. Norio Yakami, Lucy Yakami, Luiz A.T. Sayão, Eduardo Perereira e Ferreira. São Paulo:Vida Nova. 1999, p.362.
3. Op. cit, p. 380.
4. Em certo debate na rede social Facebook, Mauricio Zágari, um dos editores responsáveis pela produção da NVT, criticou meu argumento acerca do lapso entre gerações que existe. Segundo Zágari “Uma tradução bíblica demorar décadas para ser atualizada a fim de que os leitores tenham uma melhor compreensão para mim não é virtude alguma; na verdade, me parece uma lástima, pois muitos leitores que poderiam estar compreendendo o que leem não estão. Isso não é uma moda, é uma necessidade”. Bem, meu argumento continua o mesmo pelo simples fato que, a despeito de várias mudanças significativas, o português escrito em 1969 é praticamente o mesmo escrito hoje. Traduções literais são mais duráveis e resistem à atualização frequente pelo fato da própria tradução se render não ao contexto contemporâneo, mas ao Bíblico, pode-se se aproximar ainda mais ao estilo do próprio autor bíblico. Em termos de atualização da linguagem, traduções como a Almeida Fiel e ainda mais a Almeida Contemporânea praticamente não possuem arcaísmos.